Portugal implantou no Brasil os Cartórios e as Capitanias
Hereditárias; a semelhança de uns com os outros reside no fato de que as duas
invenções permaneciam com pais e filhos e a dessemelhança está no
desaparecimento das Capitanias desde o século XVIII, enquanto há eternização
dos Cartórios que se tornam cada vez mais fortes.
A Constituição Federal autoriza a delegação da atividade cartorial
para o setor privado:
“Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em
caráter privado por delegação do Poder Público”.
A Lei 8.935/94 enumera quais os
cartórios extrajudiciais:
“Art. 5º. Os titulares de serviços notariais e de registro são os:
I – tabeliãs de notas; II – tabeliães e oficiais de registro de
contratos marítimos; III – tabeliães de protesto de títulos; IV oficiais de
registro de imóveis; V – oficiais de registro de títulos e documentos e civis
das pessoas jurídicas; VI – oficiais de registro civis das pessoas naturais e
de interdições e tutelas; VII – oficiais de registro de distribuição”.
As atividades notariais e de registro
incluem-se entre os serviços públicos, delegados pelo Estado ao particular,
mediante concurso público. Seus servidores são dotados de fé pública, ou seja,
o que eles atestarem passa a ser verdade, porque vigente a presunção de
veracidade de seus atos.
A desvinculação funcional desses servidores com o Poder Judiciário
deu-se com a Constituição de 1988, mas há doutrinadores que ainda consideram os
notários e registradores como funcionários públicos, vez que concursados e
fiscalizados pelo Judiciário, art. 14 Lei 8.935/94. A função é privativa de
bacharéis em direito.
As atividades desses servidores destinam-se a garantir a publicidade,
autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos praticados. Percebe-se
então que são órgãos criados para evitar litígios judiciais. Na verdade, a
burocracia desses serviços tem criado ambiente para maiores pendengas no
Judiciário, além da perda de tempo e dos altos custos exigidos de todos os
cidadãos.
No Brasil, nem a lei é capaz de dispensar os carimbos, as autenticações,
os reconhecimentos de firmas, as certidões, os Cartórios enfim.
Vejamos a grande utilidade, por exemplo, da certidão negativa de
débito perante a receita!
Obtém-se a certidão de que nada se deve, mas, ao mesmo tempo,
insere-se, no documento, a ressalva de eventual dívida a ser apurada. Ou seja,
não é, mas é, não deve, mas poderá vir a dever.
Os Cartórios extrajudiciais não têm padronização dos documentos que
expedem, não possuem critérios precisos para instalação neste ou naquele
município, não há troca de informações entre as unidades, pois, em grande
parte, falta-lhe o uso da tecnologia disponível; ademais, há grande diversidade
de remuneração, vez que enquanto uns percebem milhões por mês, outros recebem
salário incondizente com a atividade.
Nem se fala nas conquistas promovidas pelo ministro da
Desburocratização Hélio Beltrão, quando atuou no ministério que perdurou entre
nós entre os anos de 1979 e 1986; muitas facilidades obtidas para
desburocratizar a catedral de papéis que somos obrigados a portar terminaram
sendo revogadas ou caídas no esquecimento, mesmo porque se avançava muito
rapidamente para diminuir a tortura dos cidadãos nos Cartórios e nas
repartições públicas e esta não é meta dos burocratas.
Vejamos o que dizem algumas leis e, na prática, o que se faz.
O Código Civil, art. 225, estabelece que reproduções fotográficas,
cinematográficas ou “quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de
fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos,
não lhes impugnar a exatidão”.
Órgãos públicos e privados continuam exigindo fotocópia autenticada de
documentos e ainda querem firma reconhecida.
As Constituições, inclusive a atual dispõem que é gratuita a
celebração do casamento civil, art. 226, § 1º. Os oficiais, entretanto,
encontraram meios para cobrar pelo ato e interpretam a literalidade do texto
para concluir que a celebração é realmente gratuita, mas a habilitação, os
proclamas, as certidões e os atestados, indispensáveis para a celebração, são
pagos. No final, o cidadão pobre termina sendo obrigado a desembolsar para a
regularização de situação fática extralegal, criada em função do descumprimento
da lei e da liberação de valores para regularização da vida civil. Mas, se dispensável a cobrança pela
celebração do casamento, exigem o atestado de pobreza; acontece que esse
documento é obtido na Delegacia de Polícia e o titular argui a
indispensabilidade de diligência para fornecimento; todavia, se prescindível
esta, o atestado de pobreza expedido deverá ser reconhecida a firma no Cartório
e o ato é pago. Ainda há outra motivação para se cobrar o casamento civil,
consistente na alegação de que o serviço prestado é privado por delegação do
Poder Público e, portanto, não se pode deixar de cobrar sem que o Estado pague
pelo interessado.
O registro civil de nascimento e a certidão de óbito também são
documentos que devem ser expedidos pelos Cartórios, gratuitamente, para os
“reconhecidamente pobres”, art. 5º, LXXVI, a) e b), mas o cidadão enfrentará a
mesma dificuldade acima e termina tendo de pagar para obtê-los. Registre-se
que, nesse caso, não há dubiedade para interpretação da lei.
Somente após a edição da Lei n. 10.169 de 29/12/2000 foi possível a
obediência ao dispositivo constitucional. O art. 7º dessa lei estabelece que os
notários e registradores sujeitem às penas previstas na Lei n. 8.935/94 e o
art. 8º determina a forma de compensação aos serventuários pelos atos gratuitos
praticados.
Nos Cartórios extrajudiciais são anotados o nascimento, o casamento,
divórcio e morte de todo cidadão; o reconhecimento de validade do diploma do
profissional; o registro de imóveis; eventuais restrições nos bens para
garantia, através da hipoteca, a abertura de uma empresa e muitos outros atos
da vida civil.
A Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou, em
12/7/2010 a situação dos 14.964 Cartórios extrajudiciais do Brasil. Anotou que
há 5.561 cartórios preenchidos sem concurso público. Chamou a atenção para o
fato de que desses Cartórios com titulares interinos alguns recebem mensalmente
a importância de R$ 5 milhões; muitos ocupam o cargo por herança. O CNJ
descobriu 153 cartórios-fantasmas, que funcionam sem qualquer autorização
legal. Ou seja, o cidadão foi lá assumiu e passou a praticar todos os atos como
se fosse nomeado para o cargo. Tudo isso acontece, apesar de a Constituição exigir
concurso público para preenchimento dos cargos, art. 236, § 3º.
Reportagem do jornal “O Globo” anotou que no ano de 2006 os quase 15
mil Cartórios extrajudiciais arrecadaram a significativa cifra de R$ 4 bilhões.
Nessa oportunidade, o CNJ recebeu dados e constatou que a arrecadação média
desses Cartórios mensalmente situa-se em quase R$ 30 mil. O Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro indica que o 9º Ofício do Registro de Imóveis, no centro da
cidade, arrecadou a importância de R$ 35.5 milhões no ano de 2005.
Há Cartórios altamente lucrativos, Registro de Imóveis e Tabelionatos;
outros que não tem como se manter, Registro Civil de Nascimento e Óbito.
Ocorreram algumas tentativas para alterar a sistemática cartorária no
Brasil. Em 2001, Proposta de Emenda Constitucional n. 25, de 22/08/2001, buscou
modificar o art. 236 da Constituição, nos seguintes termos:
Art. 236 ...
“Parágrafo 4º - Ficam excetuados os serviços de registro de imóveis
que mediante lei estadual ou da Câmara Legislativa, serão exercidos diretamente
pelos Municípios ou pelo Distrito Federal”.
A Proposição n. 292 de 17/10/2000, Emenda à Constituição,
procurou transferir para os municípios,
para as Juntas Comerciais dos Estados e para os órgãos auxiliares da justiça, o
registro das pessoas naturais, o registro de imóveis, de pessoas jurídicas, a
autenticação de documentos, o reconhecimento de firmas e o protesto de títulos
e documentos.
Evidente que nenhuma das proposições obteve êxito, porquanto o lobby
cartorário é muito forte e as proposições foram arquivadas.
No direito estrangeiro a matéria recebe tratamento diferenciado. Em
outro trabalho, mostramos que, em Portugal, de onde herdamos a cultura
cartorária, já se admite fé pública a inúmeras entidades profissionais, a
exemplo das Juntas de Freguesia, dos operadores dos Correios, das Câmaras de
Comércio, aptas a autenticar documentos de conformidade com o Decreto-Lei n. 28
de 13/03/2000.
Nos Estados Unidos a
secretária de uma agência de automóvel, o funcionário de um banco, os advogados
tem o poder do notário e, portanto, aptos a fazer o reconhecimento de firmas,
sem custo algum.
A característica fundamental dos Cartórios situa-se no baixo custo
operacional da atividade, no risco zero da operação, seguido de altos
rendimentos para seus “proprietários”.
Serve de retrato para os Cartórios o verso da música de Noel Rosa:
“Espera mais um ano que eu vou ver.
Vou ver o que posso fazer.
Não posso resolver nesse momento,
Pois não achei o teu
requerimento”.
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