Nos anos quarenta chega à cidade
de Santana, Ba., distante 850 quilômetros de Salvador, um padre, na condição de
pároco desse município; em pouco tempo, mostrou sua verdadeira vocação para a
formação pessoal e profissional dos jovens.
Era sisudo, extremamente tímido,
mas de cultura inigualável e de fé inquebrantável.
A dedicação desse homem à igreja e
à educação serviu para melhorar o nível da religiosidade e da cultura do povo
de Santana, além de contribuir para o desenvolvimento do pequeno município. A
assunção da paróquia pelo padre Felix Souza foi importante para toda a
comunidade, porque retirou da mente dos mais velhos a crença corrente de que um
dos seus antecessores teria “atirado praga” na cidade, motivo do atraso de todo
o município.
As famílias de Santana devotavam
sincero respeito, significativa reverência ao padre que se mostrou grande
educador, fundamentalmente pelos bons princípios morais que transmitia ao seu
“rebanho”. Louvavam a Deus pela sua presença e temiam, no início, sua eventual
transferência para outra paróquia, fato comum, mas que efetivamente nunca
aconteceu; a aproximação do padre com o povo foi de tal ordem que bispo nenhum
se aventurou a transferi-lo.
O tempo passou e a pequena cidade
de Santana atraia jovens das cidades vizinhas, motivado pela fama do educador.
Seus ensinamentos morais, religiosos e intelectuais repercutiam em toda a
região, através da escola que fundou e dirigiu durante toda a sua vida,
denominada Educandário Diocesano Sant’Ana.
Além do Educandário, criou uma
irmandade católica, “Filhas de Fátima”, formada por moças religiosas que se
entregavam à Congregação para difundir os princípios da religião católica. As
“Filhas de Fátima” prestaram e prestam relevantes serviços ao Educandário, onde
lecionam, depois de especializarem nesta ou naquela matéria.
Algum tempo depois, no comando da
igreja católica em Santana, o padre, meu mestre, foi promovido na hierarquia da
igreja, a Monsenhor, mas não fazia questão do título recebido e todos tratavam-no, como ele preferia ouvir, padre
Felix. O Monsenhor não ficou muito tempo como pároco, pois as atribuições
educacionais absorviam suas atividades e, assim, a igreja permitiu-lhe dedicar
somente à educação, no Educandário Diocesano Sant’Ana, que não é escola
pública, mas pertencente à Diocese de Bom Jesus da Lapa, e entregue ao comando
do Padre e das Filhas de Fátima. Apesar de particular, a escola cobra módicas
mensalidades e não se registra um único caso de cobrança judicial dos inadimplentes, que são numerosos. Aliás, não
se anota constrangimento algum para os alunos que atrasam no cumprimento de
suas obrigações, porque o costume é esperar condições dos pais para adimplir,
além, de ser comum a gratuidade para aqueles sem condições financeiras. Há inexplicável
tolerância, movida pelo sentimento de que a escola não visa lucros, mas busca
oferecer cultura aos seus alunos.
Monsenhor Felix possuía cultura
sem igual e falávamos até que ele tinha proteção superior, tamanhos seus
conhecimentos e sua memória. Era um padre que cultuava, como poucos, a língua
pátria. Entusiasmava a todos quando falava, nem tanto pelos dotes oratórios,
mas pelos conhecimentos que transmitia. Era diretor do Educandário, mas estava
sempre pronto para substituir eventuais ausências de seus professores; não
importava qual a matéria, português, geografia, matemática, francês, o
Monsenhor estava sempre em sala de aula.
Quantas vezes programava
acompanhar o Monsenhor entre a igreja e sua casa, somente para com ele
conversar e aprender algo a mais!
Extremamente metódico, zelava pelo
cumprimento de princípios morais e religiosos que professava e ensinava aos
seus alunos. Fazia caminhadas, várias vezes ao dia, de casa para a igreja Nossa
Senhora de Fátima, vizinha do Educandário. Não adiantava seus alunos
oferecer-lhe carona, porque sabiam que polidamente e ao seu jeito, era
recusada.
O Educandário Diocesano já não tem
o Monsenhor Felix; a Congregação Filhas de Fátima sente a ausência do seu
diretor; a cidade de Santana lamenta e chora a viagem sem volta do pároco
inigualável, do educador admirável.
O Padre, aos 82 anos, seis anos
atrás, morreu e a cidade não acreditava na notícia, pois imaginava ser o homem
imortal.
Esta digressão presta-se para
mostrar o início da trajetória de um aluno que aprendeu os ensinamentos do
Mestre, além de homenageá-lo, porque responsável pela ascensão do discípulo.
Iniciei meus estudos no
Educandário, onde conclui o curso ginasial, correspondente hoje ao primeiro
grau. Meu pai, quando vivo, sempre dizia, que, não fora o Educandário do
Monsenhor Felix não teria “filhos formados”. E conseguiu formar todos os cinco
filhos, dos quais dois magistrados. É que, ainda nos anos sessenta, era a única
escola que tínhamos na cidade e nossos genitores não tinham recursos para
custear os estudos na cidade de Caetité, por exemplo, distante de Santana
aproximadamente 300 quilômetros, e que, na época, se destacava por possuir boas
escolas.
Os alunos que sairam do
Educandário, em sua maioria, obtiveram êxito nas carreiras empreendidas.
Eu, por exemplo, vim de Santana,
fiz o segundo grau em Salvador, rumei para o Rio de Janeiro, onde ingressei na
antiga Faculdade Nacional de Direito, da qual era reitor o grande baiano, Pedro
Calmon. Conclui o curso de Ciências Jurídicas no ano de 1970, apesar das
dificuldades advindas das ameaças de desligamento, face à presença nos
movimentos estudantis. Participei ativamente dos movimentos e cheguei a
desfilar pelo centro do Rio de Janeiro, deitado em uma cama e carregado pelos
colegas, simbolizando a preguiça do ministro da Educação na solução dos
problemas educacionais do Brasil.
Calabouço era o restaurante dos
secundaristas no Rio de Janeiro, ao qual frequentei nos primeiros anos. Edson
Luis, um dos mártires estudantis da
resistência ao golpe, morreu exatamente no Calabouço, no ano de 1968; o
assassinato dele provocou revolta e protesto na passeata dos 100 mil. O ato
contou com participação ativa do clero, dos professores, de intelectuais,
artistas e jornalistas e terminou sem incidente algum. Eu estava lá.
Trabalhei na Agência de Notícias,
ASAPRES, e mais tarde, através de concurso, tornei-me funcionário da Petrobrás;
desliguei-me do emprego, após a conclusão do curso de Direito; fui orador da
turma, e explanei os princípios que aprendi com o Monsenhor Felix,
aperfeiçoados com a vida da cidade grande.
Hoje, os estudantes, os
trabalhadores e os funcionários públicos não mais incomodam os governos; não
reclamam, não reivindicam seus direitos; recebem o salário que aprouver aos
empresários, estudam de conformidade com as regras traçadas pelo sistema. O
clamor popular não é mais ouvido: “abaixo a ditadura”; “abaixo a corrupção”,
etc. Esta praga que destrói o patrimônio nacional, na atualidade, acaba também
com o conceito do país e ninguém grita; aceita-se a delegação concedida através
do voto aos políticos, que fingem representar o povo no Congresso
Nacional.
A advocacia, no oeste da Bahia,
serviria como trampolim para a política; nos sete anos de exercício da profissão,
1971/1977, na cidade de Santana e região, percebi a incompatibilidade de meu
perfil para a vida partidária. Rumei definitivamente para o trabalho nos fóruns
do oeste baiano, na expectativa de concurso público para o cargo de Juiz de
Direito, que só aconteceu sete anos depois de formado, em 1977. Não perdi
tempo, porque aprimorei meus conhecimentos para usar na magistratura.
Militei também como professor naquela
mesma escola, onde aprendi princípios cristãos, inclusive e principalmente na
defesa dos necessitados. Esses ensinamentos foram incutidos na minha mente pela
minha mãe, por meu pai e pelo meu educador, Monsenhor Felix.
A advocacia provocou-me
questionamentos de toda ordem: o pequeno perdia a causa porque não dispunha de
recursos para contratar bons advogados; as comarcas estavam sempre sem juiz
titular e o substituto sem condições para agilizar a prestação jurisdicional;
os servidores maltratados, injustiçados e explorados pelo sistema continuam sem
incentivo na carreira; a morosidade é patenteada pelo Judiciário e constitui
reclamação de todos, pobres e ricos. Obstáculos de outras ordens
preocupavam-me, a exemplo da extrema burocratização dos serviços judiciários, a
imperfeição das leis, etc. Mesmo assim, enfrentei o desafio e continuo lutando,
contra a formalidade exagerada, contra a burocratização, contra o império do
papel nos serviços da Justiça. A desigualdade social tornou-se apanágio de
luta.
A posse no cargo de Juiz de
Direito da comarca de Oliveira dos Brejinhos, 1977, marcou o inicio de um novo
sonho. Quebrei paradigmas, inovei e reclamei; passei por Bom Jesus da Lapa, em
1980/2 e Barreiras, em 1983 até chegar à Capital no ano de 1989. Busquei
ensinamentos do Direito em Portugal, na França, nos Estados Unidos, escrevi
livros, centenas de artigos; depois de mais de 35 (trinta e cinco) anos na
magistratura, cheguei ao cume da carreira: tornei-me desembargador e finalizei
como Corregedor das Comarca do Interior. Nessa condição, visitei todas as
comarcas da Bahia.
Aposentado formalmente, reinicio a
atividade de advogado, de escritor, de palestrante com os mesmos sonhos, com a
mesma disposição, com os mesmos ideais transmitidos por meus pais, cicatrizados
por aquele humilde padre que só viveu para servir.
Salvador, julho/2014.
Des. Antonio Pessoa Cardoso.
PessoaCardosoAdvogados
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