Não, sério mesmo,
somos todos ladrões? Gostamos muito de criticar “o brasileiro”, como se não
fôssemos brasileiros também. Mas somos e, portanto, o certo não é perguntar se
o brasileiro é ladrão, mas se podemos ser descritos como um povo constituído
basicamente de larápios, aí compreendidos os corruptos de toda sorte, até mesmo
os que recebem um “por fora” com a expressão honrada de que não estão fazendo
nada de errado, estão fazendo o que há séculos vem sendo feito. Foi a primeira
coisa, por exemplo, que o presidente Lula disse, quando começou a revelação de
irregularidades no financiamento de sua campanha política – é assim que sempre
se fez neste país.
Ele tinha razão,
claro. É assim que sempre se fez e assim se continua fazendo, em todos os
setores. E é interessante esse negócio de “o brasileiro” nunca incluir quem
está fazendo a crítica. Ele pessoalmente é honestíssimo, mas o brasileiro é
desonesto por natureza. Os políticos ladrões, por exemplo, são uma espécie
extraterrestre vinda não se sabe donde, não são gente como nós, com a mesma
língua, os mesmos costumes e a mesma cultura. Observação igual pode ser feita
em relação a juízes e desembargadores ladrões, policiais e fiscais idem e assim
por diante. Tudo “brasileiro”, é impressionante.
Não me esqueço de
uma festinha a que fui, faz muitos anos. O dono da casa era sogro de um amigo
meu e nos conhecemos nessa noite. Bem-falante, articulado e espirituoso,
iniciou, quando soube que eu era jornalista, uma longa palestra sobre a
desonestidade do brasileiro. Com toda a certeza a razão principal era que
descendíamos do que de pior havia em Portugal, degredados, criminosos de toda
espécie, a escória mesmo. Daí estar no sangue a desonestidade do brasileiro,
políticos e autoridades eram de enojar, de causar asco invencível. Ele, em sua longa
carreira de funcionário da alfândega (ou coisa semelhante, foi mesmo há muito
tempo e não lembro direito), já tinha visto de tudo, não acreditava em mais
nada, o brasileiro era preguiçoso, lerdo, descarado e ladrão, a verdade era
essa.
Isso se passava numa
casa muito ampla e confortável, entre doses generosas de uísque escocês e
outras bebidas estrangeiras, com fundo musical saindo de um esplêndido aparelho
americano. Num dos intervalos da palestra, o genro dele e meu amigo comentou
que, bebendo daquele uísque, estávamos a salvo de falsificações, era tudo
legítimo, apreendido como contrabando. Isso mesmo. Aquele Catão cuja voz
tornava a reverberar de indignação moral contra gatunos e corruptos estava
servindo uísque contrabandeado, ouvindo uma eletrola (naquela época, aparelho
de som se chamava assim) contrabandeada, numa casa que seu salário não
permitiria etc. etc. Naquela época, ainda muito jovem, achei que ele era
exceção, mas um diabinho aqui insiste em que é a regra, a qual, quanto mais
vivemos, mais se comprova. Podia haver catadura mais austera e severa do que a
do juiz Lalau?
E vocês já notaram
como o brasileiro (nunca nós, nós não, nós estamos fora dessa), se bem
observado, fala no político ladrão com um ar meio cúmplice, quase admirando a
esperteza do indigitado? Quando é do tipo rouba-mas-faz, a admiração às vezes
até se manifesta abertamente. São raras a indignação, a raiva ou a revolta.
Mesmo os que o chamam de ladrão safado dizem isso muitas vezes quase carinhosa
e compreensivamente. Em outras culturas, o furto de dinheiro público é mais
grave do que o furto de um bem particular. Não sei se devem existir gradações
nesse caso, mas, entre nós (perdão, leia, em vez de “entre nós”, “para o
brasileiro”), há bastante mais compreensão ou mesmo simpatia para com o ladrão
do dinheiro público.
Além disso, ninguém
é punido, a não ser o pobre mesmo. São raríssimos os casos em que o ladrão rico
vai para a cadeia. Quando vai, demora pouco e não devolve o dinheiro afanado. O
provérbio está com a conjunção errada, é uma aditiva, não uma adversativa. Não
é “a justiça tarda, mas não falta”; é “a justiça tarda e falta”. Em toda parte,
em qualquer setor de atividade, todo dia se revela mais um caso de roubalheira
ou maracutaia. Mas ninguém que tenha poder, seja econômico ou político, é
punido. Suspeito que o brasileiro presta mais atenção no que as pessoas fazem e
não no que elas dizem e aí fica patenteado que roubar pouco é que é burrice.
Roubar muito é o certo e o brasileiro é esperto e malandro. Cada um procura
suas melhoras e fala mal quem tem inveja, ou não teve coragem e competência
para se locupletar.
O brasileiro é tão
irremediavelmente safado, que nós, outros, temos até dificuldade em ajudar o
próximo. Diante da tragédia em Santa Catarina, nós demonstramos solidariedade e
fraternidade. De todo o país seguiram doações, inclusive dinheiro, e
apresentaram-se voluntários para ajudar de alguma forma, o país se mobilizou.
Mas o brasileiro, sabe como é, o brasileiro não tem jeito. E lá foram pilhados
diversos brasileiros furtando as doações, a ponto de aqueles entre nós que
mandaram dinheiro desconfiarem que a grana foi parar no bolso de algum deles.
Bem, tudo isso já
foi dito e redito e nunca adiantou nada. Claro que não somos ladrões, ninguém
aqui é ladrão, ladrão é o brasileiro. Temos de mudar a mentalidade e os valores
do brasileiro e, verdade seja dita, estamos aperfeiçoando o regime aos poucos.
Agora mesmo, o Senado aprovou a recriação de mais de sete mil vagas de
vereador, que haviam sido extintas. Os senadores garantem que não haverá
aumento nos gastos federais, porque há um limite constitucional para o repasse
de verbas, que permanece inalterado. Menos mal. Só falta agora que os
vereadores não sejam brasileiros, porque o brasileiro é realmente sabidíssimo e
começa a carreira de ladrão no município mesmo.
DE AUTORIA DE JOÃO UBALDO RIBEIRO, SERVE PARA HOMENAGEÁ-LO. GRANDE ESCRITOR, GRANDE HOMEM, GRANDE BRASILEIRO.
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