É complexa a formação do Judiciário brasileiro.
A Constituição enumera os órgãos encarregados de prestar os serviços jurisdicionais: o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça, os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais, os Tribunais e Juízes do Trabalho, os Tribunais e Juízes Eleitorais, os Tribunais e Juízes Militares e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
Os magistrados Federais e Estaduais enquadram-se no que se denomina de Justiça Comum para diferenciar da Justiça Especializada, composta pela Justiça do Trabalho, Militar e Eleitoral.
Os Juizados Especiais foram criados à parte, visando facilitar o acesso do pequeno à Justiça e destinados a solucionar as demandas do dia a dia; tornaram-se tão formais e tão ordinários quanto a Justiça Comum.
A Justiça Trabalhista, assim como a Justiça Eleitoral, diferentemente da Justiça Militar e da Justiça Comum, existem somente ao nível federal. A Justiça laboral, competente para julgar as causas oriundas de relação do trabalho, é composta por varas do trabalho, ocupadas por juízes togados; em segundo grau, estão os Tribunais Regionais; e por fim o Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, com 27 ministros.
Para julgar os crimes, definidos em lei, praticados por militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, criou-se a Justiça Militar da União; já para julgar os delitos de autoria de policiais militares e dos bombeiros inventou-se a Justiça Militar dos Estados.
A Justiça Militar da União é exercida por Conselhos de Justiça, distribuídos em circunscrições judiciárias e formam o primeiro grau desta especializada; o segundo grau, correspondente aos Tribunais Regionais, está nas mãos do Superior Tribunal Militar, sediado em Brasília e composto por 15 ministros.
O Conselho de Justiça Militar, com quatro oficiais das Armas, denominados juízes militares e um juiz de direito, formam a Justiça Militar dos Estados de primeiro grau; o segundo grau existe somente em três Estados, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul; nas outras unidades federadas, os tribunais de justiça é que desempenham o encargo de reexaminar as decisões de primeira instância.
A Justiça Comum Federal é competente para dirimir conflitos de natureza cível e criminal nos quais a União esteja envolvida além de outras questões enumeradas na Constituição Federal. Não se instalou a Justiça Comum Federal em todos os municípios dos Estados, daí porque os juízes estaduais recebem delegação para desempenhar o encargo; o segundo grau fica com os Tribunais Regionais Federais, agrupados em cinco regiões do país.
A Justiça Comum Estadual soluciona os conflitos e crimes praticados por particulares, competindo aos Estados sua organização. É composta por juízes, na primeira instância, em grande parte das cidades, nos Estados, e pelos tribunais de justiça, como segundo grau, nas capitais.
O Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça, o Superior Tribunal de Justiça, têm competência definida na Constituição, mas funciona o STJ como se fora terceira instância da Justiça Comum Federal e Estadual.
A população cresce, os tipos e números de demandas avolumam-se e a quantidade de magistrados não aumenta em igual proporção, conforme dispõe a Constituição, art. 93, inc. XIII; o resultado não poderia deixar de ser o acúmulo de processos sem julgamento e a má prestação jurisdicional; institucionaliza-se a súmula vinculante, que serve para desafogar o Judiciário, cria-se o princípio da repercussão geral, filtro recursal no STF, e não se resolve o problema da distribuição de justiça.
A Justiça Eleitoral, tema de nossa análise, também comporta três instâncias: os juízes eleitorais, função conferida aos juízes da Justiça Comum Estadual e às Juntas Eleitorais, escolhidas entre eleitores da zona eleitoral; os Tribunais Regionais Eleitorais, segundo grau, compostos por juízes da Justiça Comum Estadual e Federal e por advogados. O terceiro grau é conferido ao Tribunal Superior Eleitoral, e seus membros, em número de sete, escolhidos entre ministros do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e mais dois advogados apontados pelo Presidente da República.
A Justiça Eleitoral é federal e, portanto, somente a União pode legislar sobre a matéria.
A Constituição imperial de 1824 guardava preceitos, segundo os quais a verificação, acompanhamento e proclamação dos resultados das eleições para o Legislativo competiam aos próprios membros das Casas em todos os níveis municipal, estadual e federal; o sistema permaneceu até a Constituição de 1891 que conferia competência ao Congresso para apurar os resultados da escolha do Presidente e do Vice-Presidente, art. 47.
Somente em 1932 foi criada a Justiça Eleitoral, através do Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro; originou-se da vontade política dos golpistas de 1930 e a Constituição de 1934 inseriu os juízes e tribunais eleitorais dentre os órgãos do Poder Judiciário, art. 63. O Código Eleitoral de 1932 foi inspirado na Justiça Eleitoral da República Checa.
Em novembro de 1937, Getúlio Vargas implantou a ditadura no país, promulgou nova Constituição, denominada “Polaca”, que não recepcionou a Justiça Eleitoral; nessa Carta os órgãos do Poder Judiciário eram o Supremo Tribunal Federal, os Juízes e Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios e os Juízes e Tribunais Militares. Nota-se que também não existia a Justiça Comum Federal.
A Justiça Eleitoral foi restabelecida no fim do Estado Novo, através do Decreto-Lei n. 7.586, de 28/05/1945; a Constituição de 1946 e todas as que se seguiram mantiveram-na com competência para preparar, fiscalizar e apurar as eleições, proclamar os eleitos além de exigir cumprimento das normas jurídicas que regem todos os pleitos, inclusive no que se refere às contas das campanhas eleitorais, com punição para os violadores das leis específicas.
Em outro trabalho, sob o título “Desnecessária a Justiça Militar”, desenvolvemos o entendimento de ser possível a extinção da Justiça Militar, tanto no âmbito federal quanto estadual.
Aqui se defende a tese da indispensabilidade de profundas alterações na estruturação da Justiça Eleitoral, porque, atualmente, aos juízes é conferida competência para solucionar problemas de ordem administrava e não jurisdicional. Não há polêmica sobre o fato de que a maioria dos trabalhos da Justiça Eleitoral é de ordem administrativa e, portanto incompatível com a função precípua do magistrado, que é a de julgar.
A Justiça Eleitoral não possui quadro próprio, pois seus membros são recrutados da Justiça Comum Federal e Estadual e entre advogados. A investidura é por tempo limitado.
Esta situação anômala possibilita o bom funcionamento da Justiça Eleitoral, apesar da inversão de valores, mas emperra o andamento dos serviços judiciários da Justiça Comum, mesmo porque a Lei n. 4.410/64 assegura prioridade para os “feitos eleitorais”.
A Justiça Comum não tem a infraestrutura material e humana desfrutada pela Justiça Eleitoral, porquanto lhe falta espaço físico, recursos materiais e humanos, juízes e servidores com condições de atender aos inúmeros conflitos que lhes chegam. Isto acontece, em parte, porque os juízes da Justiça Comum são convocados para julgar na Justiça Eleitoral e terminam prestando serviços não judicantes, mais de ordem administrativa. E a situação se complica no período eleitoral, quando os juízes deixam completamente os processos da Justiça a qual pertencem e passam a atuar fundamentalmente nas atividades administrativas da Justiça Eleitoral, onde estão temporariamente.
Os doutrinadores ensinam que a atividade judiciária é caracterizada pela violação à ordem jurídica e consequente aplicação de sanção civil ou criminal. Em poucos momentos, os juízes são chamados para dirimir conflitos, mas atuam para alistar eleitores, para recontar votos.
Essa imprecisão da causa eleitoral provoca, por exemplo, exigência da intermediação de advogado, porque de ordem constitucional, quando, na verdade, o ato em questão seria apenas atividade administrativa e não contenciosa, dispensável, portanto o chamamento do profissional. Um simples pedido de recontagem de votos, atividade que não é judicante, não deve exigir a participação de advogado, mas de delegado do partido, apesar de o TSE traçar, como regra geral, a indispensabilidade de advogado na Justiça Eleitoral.
O Juiz abandona a jurisdição e entrega-se à administração!
Não se nega que a Justiça Eleitoral funciona bem, mas o preço que se paga é bastante alto, pois os juízes são chamados para servir a um segmento e a uma atividade que não condiz com sua formação; são obrigados a descuidar da parte principal, julgar na Justiça Comum, para atuar administrativamente na Justiça Eleitoral. Sabe-se que em ano eleitoral os processos na Justiça Comum movimentam-se muito lentamente para paralisarem quase completamente nas proximidades das eleições.
O cenário que se arma é o seguinte: a Justiça Eleitoral, que não sobrevive sozinha, mas se serve da Justiça Comum, presta relevantes serviços à comunidade, mas a Justiça Comum, que existe sem chamar outros segmentos para sua formação, entrega maus serviços aos jurisdicionados.
Efetivamente, o teorema é confuso e não dá para entender.
O conjunto de atos praticados para a realização das eleições, como o alistamento, o atendimento aos eleitores, a fiscalização das contas dos partidos políticos e a organização e apuração das eleições constituem atividades eminentemente administrativas, portanto alheias à formação do magistrado, preparado para julgar conflitos.
Evidente que há conflitos emergentes do processo eleitoral, portanto questões de natureza jurisdicional, e estas efetivamente são de competência dos magistrados, mas ainda que isto ocorra, ou seja, os juízes da Justiça Comum convocados para julgar processos contenciosos na Justiça Eleitoral, ainda assim, estarão deixando suas atividades na Justiça Comum Estadual para prestar serviços à Justiça Comum Federal, no eleitoral. Do alistamento até a diplomação dos eleitos surgem, em alguns momentos, demandas de natureza jurisdicional e, aí sim, de competência do juiz. Da forma como está estruturada, induvidosamente, os magistrados da Justiça Comum praticam atos administrativos na Justiça Eleitoral, além de julgar alguns conflitos no processo eleitoral, inclusive ações praticadas pelos próprios agentes da Justiça Eleitoral. E as questões administrativas são a maioria das causas a serem solucionadas na Justiça Eleitoral, ficando as de natureza jurisdicional em menor número.
O preparo e apuração dos pleitos, a organização do eleitorado, consistente no alistamento, a expedição de instruções para execução da lei, o controle da propaganda eleitoral e partidária, a consulta formulada por autoridade de partido político, todas essas atividades não condizem com a ação de julgar, porque de natureza administrativa e, portanto, perfeitamente adequada para autoridades não-judiciárias, competindo aos magistrados o controle da legalidade desses atos. Aliás, assim é a organização da Justiça Eleitoral de grande parte dos países do mundo moderno. Os conflitos originados do processo eleitoral poderiam ser dirimidos pela Justiça Comum, porque aí estaria a atividade jurisdicional, mas não a preparação, fiscalização e apuração das eleições.
Evidente que, ao lado das atividades administrativas no eleitoral, há jurisdição nos âmbitos criminal e cível; naquele, haverá de ter provocação, através da ação penal pública, art. 355 Cod. Eleitoral, ou ação penal subsidiária; na área alheia ao crime, a atividade jurisdicional acontece por meio da ação pública ou privada.
Diferentemente do que ocorre com os outros ramos do Judiciário, a Justiça Eleitoral, através do TSE, possui o poder de expedir instruções para execução do Código. Essa competência é-lhe conferida pelo Código Eleitoral e não pela Constituição; da mesma forma acontece com a resposta a consulta, formuladas por autoridade federal ou órgão nacional de partido político para interpretação de matéria eleitoral; os Tribunais Regionais Eleitorais também respondem a consultas no âmbito federal, estadual e municipal; somente os juízes não possuem a competência legislativa, fora da competência natural do magistrado.
Tramita no Congresso Nacional a PEC n. 358/09 que cria o cargo específico de juiz eleitoral, apenas em municípios com mais de 50 mil habitantes, altera a composição dos tribunais de Justiça Eleitoral, incluindo três juízes deste órgão no CNJ. O TSE seria formado somente por juízes dos TREs, compostos também por juízes escolhidos pelo Presidente da República, com idade de 35 e abaixo de 65 anos. A transformação deste projeto em lei não soluciona o impasse, porquanto os juízes, principalmente nas muitas comarcas com menos de 50 mil habitantes, continuarão desenvolvendo atividades alheias à sua competência.
Há de ser repensada a convocação dos juízes da Justiça Comum, tanto no âmbito federal quanto estadual, para prestação de serviços administrativos à Justiça Eleitoral, com consequente abandono da atividade principal, qual seja a de julgar, para desenvolver função incompatível com sua própria existência, administrar.
Salvador, 20 de setembro e 2014.
Antonio Pessoa Cardoso.
Ex-Corregedor - PessoaCardosoAdvogados
Nenhum comentário:
Postar um comentário