sábado, 1 de novembro de 2014

O JUSTO E O LEGAL.

O silogismo de Kelsen de que justo é aquilo que deriva da lei não pode ser compreendido em interpretação puramente literal, mas comporta hermenêutica apta a possibilitar o verdadeiro sentido da expressão. Prefiro procurar o real significado de outra assertiva: legal é o que deriva do justo. As constantes mudanças das leis prestam-se para adequá-las à imutabilidade do Direito e da Justiça. 

Os mestres ensinam-nos que a lei é, de início, constitucional, porque originada de autênticos procuradores do povo; nela está todo o Direito, mas o Direito não se resume à lei, pois esta é prioritária e não monopolizadora do bem e do mau. Já se disse que há leis monstruosas e leis tolas, leis inadmitidas pela sociedade, denominadas, no linguajar popular, lei que não pegou, leis constitucionais em parte ou leis inconstitucionais, leis justas e leis injustas. 

Compete ao julgador, em cada caso, que lhe chega para decisão, apreciar a vulnerabilidade da lei e aplicá-la na medida de sua justeza. A sociedade reclama juízes vivos, que pensam, porque a lei foi criada para determinado momento, que pode ou não se prolongar. Seria monstruoso e constituiria tolice exigir-se que os tribunais aplicassem a lei tal como foi editada, pois seu uso automático e mecânico agrada aos tecnocratas, porque defensores da máquina que não pensa, dos números que não sentem e da burocracia que não vê.

A jurisprudência também é fonte do direito, portanto responsável por não ser monolítico o sistema, emprestando assim significação singular às decisões do homem que pensa, que sente e que vê. 

Em tempos remotos, era legal queimar os judeus em praça pública, mas o ato era justo? Em alguns países do Oriente, é legal decepar a mão de quem rouba, mas é justo o procedimento? No Brasil antigo, era legal a propriedade dos senhores feudais sobre os escravos ao ponto de açoitá-los em praça pública, mas era justo este posicionamento? 

Por critério objetivo e legal considera-se incapaz penalmente o menor de 18 anos. Neste caso, o legislador não acompanhou as mudanças dos tempos, a transformação da sociedade de rural para urbana. A lei, aprovada em época na qual o menor de 18 anos era inocente, sem cultura e sem experiência de vida, diferentemente dos tempos modernos, quando o jovem, nessa idade, não é inocente, tem cultura e experiência para discernir o certo e o errado, não pode nem deve absolver os homicidas, considerando somente a autoria da ação. De outra forma, privilegia-se o filho do abastado da grande cidade, que é tratado igual ao filho do homem da roça, imaturo, analfabeto e residente na zona rural, sem o progresso que desfruta o primeiro. As pesquisas mostram a descrença do povo nos seus representantes: 80% afirmam que “no Brasil, as leis só existem para os pobres”. 

Alípio Silveira, em “O Papel do Juiz na Aplicação da Lei”, cita Hans Reichel, da Universidade de Hamburgo:

“Por detrás da lei e do Estado, estão o Direito e a própria sociedade, que nem sempre encontram nos primeiros, adequada e completa expressão. O Juiz só deve, é certo, a seu Estado e à lei; porém também se deve à sociedade e ao Direito. A obediência à lei é um predicado da constituição social, da natureza do homem e da lei. Porém essa obediência há de ser racional, inteligente e não cega. A Lei e o Direito não se identificam, não são termos que se absorvam nem se excluam; há muito mais Direito do que aquele escrito na Lei; o monopólio da produção jurídica a favor exclusivamente do poder legislativo, está em crise; dentro da lei ou além da lei, há direito que nela não está especificado nem pode estar”. 

A superioridade conferida ao Estado em detrimento do cidadão proporcionou vantagens e privilégios às autoridades maiores e ao poder público. Os governantes não se satisfazem com o poder dentro das limitações constitucionais e buscam aumento dos meios de dominação, processo aparentemente compensado pela democratização das instituições. O Estado tem hoje controle da vida do cidadão em todas as áreas, mas a recíproca não é verdadeira, porque a autoridade pública esconde-se sob o manto do poder e torna-se turva e sem a transparência exigida. Os filósofos já diziam que “a sociedade se baseia na alienação da vontade individual”, para legislar. 

Bem verdade, que a presença do Estado é reclamada para organizar toda a estrutura social da sociedade, inclusive para impedir as desigualdades sociais, mas a incapacidade do Estado-legislador, do Estado-administrador e do Estado-justiça faz aparecer para o cidadão comum a descrença e a certeza de que está desprotegido. 

O Estado-legislador legisla em causa própria ou atende a outros interesses que não a do bem estar social do povo; 

o Estado-administrador dilapida o patrimônio do povo e chega a invadir a competência dos outros poderes; 

o Estado-justiça, que recebeu isoladamente o dever-poder de aplicar as leis aos casos concretos, solucionando os desentendimentos entre os cidadãos, objetivando a paz social, não consegue atender a estes anseios da comunidade, por exemplo, quando o Estado-administrador descumpre as leis ou as decisões judiciais sob as mais variadas explicações: dificuldades econômicas, precatórias, medidas provisórias. 

O certo é que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário deviam ser a voz da sociedade, mas prestam-se para fraudar a vontade do povo. Aí é que aparece a singularidade do Estado-justiça, através do Juiz, que se obriga a ser inteligente, a ter a capacidade de pensar e impedir a continuidade da fraude, pois diferentemente dos outros poderes é formado e sabatinado pelos seus conhecimentos e não pela simpatia de suas promessas e seus gestos. Não se prega um Judiciário contra a legislação, mas a sociedade reclama justiça antes da lei. 

A lei já não é feita pelo parlamento, onde teoricamente há representantes de todas as camadas sociais, mas trabalhada por tecnocratas, desvestidos de qualquer responsabilidade social, vinculados apenas a princípios econômicos; a lei, como se disse, não mais é fruto da vontade popular (parlamento), mas resultado da cessão de convicções na busca da unidade ou de outros interesses. Frequentemente deixa-se de legislar porque não se encontra a mesmice ou porque o poderoso assim não quer. O Código Civil em vigor permaneceu nas gavetas e nos armários, esperando a uniformidade que atrasou por chegar; a reforma do Judiciário ficou por mais de uma década sem definição; quando se encontra a unidade de entendimento, - o Código Civil, a reforma do Judiciário e tantas outras leis – são desfiguradas porque seguem recomendação dos tecno-burocratas; são leis que nascem viciadas. 

O Estado-juiz, que nunca pode deixar de dizer o direito, na omissão do legislador ou na edição de lei mal concluída, é convocado para interpretar e decidir; afinal o julgamento faz parte da dignidade do homem, e o julgador é obrigado a buscar o processo, a sala de audiência para aproximar-se da realidade, mesmo com os obstáculos que outros profissionais não deparam. O juiz que deveria ser “a boca da lei”, na expressão de Montesquieu, serve-se da lei, na medida em que ela atende ao clamor popular de justiça e de direito; obriga-se a completá-la, quando produto mal acabado, “lei descartável não é lei respeitada”; a legislar, quando omissa sobre a matéria concreta. Neste encargo, o juiz não pode ser um militante hipnótico do Estado, aparentando falsa convicção nos seus julgamentos, mas um intérprete fiel dos sentimentos de justiça que lhe impõe a consciência.

Alexandre Hamilton dizia que a justiça “não tem influência sobre a espada nem sobre o bolso; não pode controlar a força nem a riqueza de uma sociedade, como também não pode assumir qualquer iniciativa”. Mesmo assim, as autoridades, que tem o controle das armas, da economia e da edição das leis, recebem o poder para administrar e para legislar, através do Estado-juiz, responsável maior pela constituição da autoridade no Estado.

O Estado-juiz decide desentendimentos entre cidadãos, mantém o patrimônio com um e tira do outro, dá razão a um e tira a razão do outro, tira a liberdade de um e concede a outro; procede-se através de requerimentos, de queixas, de petições, mas nas demandas envolvem interesses de pessoas, que sofrem, alegram-se, passam por fortes emoções, enfim, sentem. É motivo para emprestar sua convicção, sua consciência no sentido da lei, pois a dinâmica dos sentimentos humanos influem na tomada das decisões judiciais. 

Eduardo J. Couture ensina que:

“O juiz é uma partícula de substância humana que vive e se move dentro do processo. E se essa partícula de substância humana tem dignidade e hierarquia espiritual, o direito terá dignidade e hierarquia espiritual. Mas se o juiz, como homem, cede ante suas debilidades, o direito cederá em sua última e definitiva revelação. 

“Da dignidade do juiz depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e, num momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens”. 

Tristão de Athayde, pensador católico, dizia que quando o juiz deixa de aplicar a literalidade da lei com todo o seu rigor, por circunstâncias fáticas, não ofende a lei, mas cumpre-a em seu espírito e em sua equidade. 

Pontes de Miranda afirma que o juiz é subordinado ao Direito e não à lei, porque possível a lei contra o Direito e nesta busca de Justiça constitui poder-dever de o juiz repensar a jurisprudência. 

De Aruba, em 1 de novembro de 2014.

Antonio Pessoa Cardoso.

Ex-Corregedor – PessoaCardosoAdvogados

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