Os vinte anos passados da edição da Lei 9.099/95, nesse setembro, não oferece muitas alegrias para serem comemoradas pelo cidadão, pois, ao invés de aperfeiçoamento, presenciamos ao desmontamento do sistema oral, simples, informal, econômico e célere, destinado a proteger o pobre e desburocratizar a Justiça.
A origem dos Juizados remonta a 1982, quando Rio Grande/RS, Curitiba/PR e Barreiras/BA, instalaram os Conselhos de Conciliação e Arbitramento, laboratório dos atuais Juizados. Essas experiências mereceram atenção do ministro Helio Beltrão, titular do Ministério da Desburocratização, servindo-se também da prática americana, em Nova Iorque, onde funcionava a Small Claim Court desde o ano de 1934; assim, apareceu o Projeto de Lei n. 1.950/83, mais tarde Lei n. 7.244/84, que criou os Juizados Especiais de Pequenas Causas.
Naquela época, juristas, como Edgard Silveira Bueno Filho, Alir Ratacheski e a Associação dos Advogados de São Paulo taxavam a lei de inconstitucional ou de “decadência do direito e da abolição da Justiça”; nesse debate, um entusiasta da nova Justiça, o desembargador gaúcho, Luiz Melíbrio Machado, definiu assim o Juizado: “A maioria das pessoas passa a vida sem ter uma grande causa, mas não passa um dia sem enfrentar mil contrariedades”.
Os pobres gostaram da prática descomplicada que se implantou e até aclamavam com a expressão que ficou célebre: EU TE PROCESSO, porque ágil o resultado da reclamação, em confronto com a outra afirmação, usada pelos poderosos: VÁ PROCURAR SEUS DIREITOS, porque sabiam que nunca chegava a decisão.
Os teóricos, entretanto, tramaram para inviabilizar o sistema e daí, apenas onze anos depois, adveio a Lei n. 9.099, mudando o nome para Juizados Especiais Cíveis e Juizados Especiais Criminais, além de ampliar a competência, causando congestionamento que a cada dia piora o funcionamento da “Justiça dos Pobres”, hoje, completamente transformada; não fosse a alteração do art. 3º da Lei 7.244/84, substituído pelo art. 3º da Lei 9.099/95, responsável pela ampliação da competência, não teríamos o atulhamento de reclamações que inviabiliza o sistema. A “Justiça em Números”, CNJ, publica que quase 30% dos novos processos que chegam ao Judiciário são destinados aos Juizados Especiais, sem estrutura que corresponde à demanda.
A ordenação nova deveria tratar o juiz da mesma forma que se encara o árbitro de futebol, ou seja, não vê-lo como o personagem principal; essa posição é ocupada pelo conciliador, pelo juiz leigo ou pelo juízo arbitral. A lei dos Juizados Especiais admite essas três alternativas, conciliação, juiz leigo ou arbitragem, para solução do conflito, apesar de a arbitragem ser quase desusada, porquanto não se oferece a opção contemplada no artigo 24; o juiz leigo, pouco servida. Das três opções, restou apenas a conciliação.
Na Bahia, por exemplo, os juízes leigos apareceram recentemente, através do impulso dado pelo atual presidente, desembargador Eserval Rocha. Praticamente não tínhamos essa figura.
Ampliaram a competência, desobedecendo a lei e contribuindo para desmantelar os Juizados Especiais. De 20 salários mínimos, aumentaram para 40; da condenação em dinheiro, impuseram um grande número de causas, enumeradas no inciso II, art. 275 CPC, a exemplo do arrendamento rural, a cobrança ao condômino, o ressarcimento por danos em prédio urbano ou rústico; da condenação “à entrega de coisa certa…” instituiram a ação de despejo, as ações possessórias e mais ações apareceram, como a permissão para figurar como autor a pessoa jurídica.
A citação pelo correio é substituída e usam o oficial de justiça, que só deveria ocorrer em poucos casos; a precatória e a perícia informal, tornaram-se tão burocrática quanto as da Justiça Comum; nem se fala em fita magnética que usávamos no Juizado da Liberdade; a instrução do processo, a colheita de prova tem o mesmo rito; as Turmas Recursais não se reunem “na sede do Juizado”, como estabelece a lei, parágrafo 1º, art. 41, mas em pontos centrais da cidade. Aliás, os próprios Juizados estão sendo transferidos dos bairros para o centro da cidade, como se não fossem destinados para servir aos pobres que moram nos subúrbios.
Para a formulação de queixas exigem agendamento de data, mesma situação para a sessão de conciliação e para a instrução. A publicidade dos atos judiciais é outro exercício formal e colidente com a simplicidade dos Juizados Especiais, pois o conhecimento dos atos praticados no sistema deveria ser na própria assinatura do termo, se conciliação, na audiência, se sentença, na sessão de julgamento se recurso.
Quando se recorda que o Juizado foi feito para facilitar o acesso do povo à justiça, tem-se a dimensão do que essas formalidades significam para as pessoas carentes. De órgão simples e descomplicado tornou-se tão complexo quanto os tribunais; ornaram o procedimento para apreciação do recurso tão burocrático quanto os tribunais.
Nos Juizados atuais, o simples tornou-se complexo (burocratização); a oralidade não é usada; em lugar da informalidade, a formalidade, a solenidade; e a gratuidade já não é absoluta. As petições, os despachos de expediente, as liminares, as diligências, as precatórias, as certidões de conclusão, de vistas, os alvarás, os termos, as atas, os editais, os recursos, os autos, definidos na lei processual, ocupam o lugar das fichas, das sentenças, dos simples ofícios, da informação, do telefone, da gravação, do correio, definidos na Lei n. 9.099/95. Esta inversão de procedimento, localizada na infidelidade ao rito específico, provoca a morosidade, difícil de conviver em um sistema que aceitou o desafio de desburocratizar o processo.
Necessário conscientizar-se de que o povo necessita dos serviços judiciais da mesma forma que o atendimento nos hospitais, a matrícula dos filhos nas escolas, a segurança pública e o transporte coletivo.
Salvador, 30 de setembro de 2015.
Antonio Pessoa Cardoso.
Pessoa Cardoso Advogados.
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