sábado, 15 de dezembro de 2018

O ESCREVENTE QUE SE TORNOU ESCRIVÃO.

A segurança, a remuneração e outras vantagens, conferidas pelo Estado ao funcionário público, indicaram ao jovem o caminho mais seguro para viver: fazer um concurso para o serviço público.

Abandonou lazer e muitas atividades para estudar; depois de alguns anos submeteu-se ao concurso público para escrevente de cartório, denominado hoje, na Bahia, de técnico judiciário. Ultrapassou os inconvenientes do edital do concurso; aprovado, é nomeado e lotado num cartório judicial de uma comarca no interior.

Ao assumir a Comarca, passa pela primeira decepção, porquanto a imagem que criou era de iniciar com o algum curso preparatório, algum treinamento para a atividade para desenvolver a importante missão. A exigência limitou-se à apresentação de documentos e exames médicos. Nada mais.

Entusiasmado, orgulhoso, está na Comarca!

Uma casa velha, sem muitos cômodos, abriga o fórum da cidade e é imprestável para acomodar os serviços judiciários; de qualquer forma, é ali que terá de trabalhar; os móveis, computadores são velhos. O pior é que falta gente naquela casa velha, denominada de fórum; o escrevente não encontra o escrivão e muito menos o Juiz de Direito. Informam-lhe que a Comarca está sem juiz e sem promotor há mais de cinco anos; defensor público nunca teve; o quadro de servidores é mínimo, pois onde deveria ter 10, há um escrivão, e é exatamente nesse cartório que o escrevente vai trabalhar. Seu colega, o escrivão, está em vias de aposentar-se.

O tempo mostra que, mesmo sem o comandante, o povo procura a justiça: chega um que busca solução para "briga” com um vizinho; uma mulher que reclama alimentos, porque o marido abandonou o lar e deixou três filhos com a mãe sem recursos; outro que quer certidão de tramitação de processo no cartório. Todos voltam sem ter seus problemas resolvidos e o pretexto é a falta de juiz.

Com poucos meses de trabalho, um juiz de outra unidade judicial, distante em torno de 200 quilômetros, comparece à Comarca e a chegada do magistrado coincide com a presença de muitos advogados e muitos cidadãos. A primeira medida do magistrado foi baixar portaria, designando o escrevente para o cargo de “escrivão”, diante do desligamento do titular, que já se aposentou. Não adiantou o escrevente alegar as dificuldades e sem condições para exercer o cargo. Teve de assumir sob pena de responder a processo disciplinar.

No Judiciário, há gritantes incoerências: são poucas, mas há Comarcas com servidor de mais, apesar de a maioria ter poucos, ao ponto de ser necessária a atuação do prefeito, disponibilizando parte de seus funcionários para o fórum; há outra situação descabida, consistente nos altos salários para uns poucos e pequeno para a grande maioria; há ainda absoluto desleixo com a frequência ao trabalho para uns e exigência imotivada para outros.

É tudo inseguro e indefinido!

O escrevente, contrariado e para não se indispor com o juiz, assume o encargo, sem nada saber sobre processo; no serviço público de uma maneira geral, cada servidor faz o que aprendeu por si próprio ou através dos ensinamentos do colega que chegou antes, mas que também não teve aprendizado algum.

O escrevente não tem teoria sobre a ação que irá desenvolver e a única experiência que dispõe situa-se no fato de ter acompanhado por poucos meses o trabalho do colega que se aposentou. Se na função de auxiliar do escrivão já sentia dificuldade, imagine-se para assumir a direção de um cartório que conta com mais de 5.000 processos!

Trabalha, porque conta com os ensinamentos que lhe são passados pelo colega do outro cartório e dos advogados que lhe procuram.

Requer pagamento pelo desvio de função, mas os meses e anos passam e seu pedido é indeferido. A motivação inicial começa a esvair-se, mesmo porque não tem ninguém como chefe para passar sua amargura.

A queixa maior do servidor não se situa na boa ou má remuneração, mesmo porque se comparados, o setor público, no Judiciário, paga melhor, apesar de não oferecer resultados como é o caso do setor privado. O questionamento maior está na verdadeira “bagunça" que reina nos cartórios, por falta de investimento e de atenção; ademais, não se respeita o direito do servidor, no que se refere a férias, pagamento de substituição, etc; exige-se dele além do que pode e deve oferecer e o estado de cobrança é permanente.

A preocupação nos serviços da Justiça reside no tratamento desigual, pois enquanto uns recebem pouco, pelo desvio de função, outros, como nosso personagem, nada ganha.

O serviço público, e o Judiciário, em particular, através de seus administradores, não se conscientizou de que o seu patrimônio maior, situa-se nos servidores, porque responsáveis pela movimentação das atividades e, portanto, causadores de melhor prestação de serviço ao cidadão.

O cidadão tem de saber que, se a Comarca não dispõe de juiz, de promotor, ou de defensor, de servidor ou de infraestrutura, a exemplo do local onde deve funcionar a justiça, evidente que haverá negação do direito.

Nosso personagem, foi levado pela situação e continua na Comarca, mas contando o tempo para aposentar-se.

Salvador, dezembr/2015 
Antonio Pessoa Cardoso. 

PS – Esse artigo não foi publicado e redigido em 2015, mas continua atual.

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