O descaso do Procurador-geral da República com as agressões de Bolsonaro às instituições do país é analisado pelo editorial abaixo, do jornal "O Estado de São Paulo".
As férias do sr. Aras
Omissão atual é ainda pior que excessos pretéritos do MP. O PGR tem direito ao descanso, mas tem também o dever de trabalhar: há um regime democrático a ser defendido
O procurador-geral da República, Augusto Aras, está de férias. Trata-se de um direito constitucional de todos os trabalhadores. No entanto, no caso de Augusto Aras, há uma peculiaridade. Não é fácil identificar a diferença entre seu período de trabalho e o de descanso. Seria injusto, portanto, atribuir às férias de Augusto Aras o que ocorreu nesta semana: a absoluta indiferença da Procuradoria-Geral da República (PGR) perante o mais novo ataque do presidente Jair Bolsonaro contra as eleições e contra o País. Se o procurador-geral da República não estivesse de férias, muito provavelmente suas ações (ou, melhor dizendo, omissões) não seriam muito diferentes.
Como se sabe, o presidente Jair Bolsonaro utilizou uma reunião com embaixadores estrangeiros, no dia 18 de julho, para dizer ao mundo que o Brasil não é uma democracia confiável, falar mal das instituições nacionais e de políticos adversários e incentivar sua patota a não respeitar o resultado das eleições. Segundo Jair Bolsonaro, as urnas eletrônicas da Justiça Eleitoral são uma fraude. Não tem nenhuma prova, mas acha-se no direito de disseminar desconfiança e revolta contra o sistema eleitoral.
Ante esse ataque, o Brasil e o mundo reagiram imediatamente. Os Estados Unidos emitiram nota atestando que as eleições aqui são modelo para a comunidade internacional. Internamente, instituições públicas e entidades civis manifestaram-se. No entanto, o procurador-geral da República não viu no episódio nenhum motivo de alarde. Talvez tenha considerado irrelevante o caso, tão irrelevante que não se deu ao trabalho de sequer emitir uma mísera nota.
Depois de três dias, questionado pelo País inteiro sobre qual seria a resposta da PGR, Augusto Aras afinal publicou, na quinta-feira, um vídeo com trechos de falas suas, gravadas antes da reunião do dia 18 de julho, expressando sua confiança no sistema eleitoral. Ora, a opinião do sr. Aras é absolutamente irrelevante para o País; o que interessa são as providências do procurador-geral da República contra essa intolerável ofensa do presidente à democracia e ao Brasil. E essas providências não vieram.
Há um abismo entre o comportamento de Augusto Aras e a missão institucional do Ministério Público, de “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, como dispõe a Constituição. Perante uma escalada de ameaças e ataques contra o sistema eleitoral por parte do presidente – uma situação de contínua afronta à Constituição e à legislação eleitoral –, o procurador-geral entendeu que bastava lembrar suas convicções pessoais. No tal vídeo, Aras diz que não acredita que se repita no Brasil a invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, inconformados com a derrota do presidente americano na eleição de 2020. E declara que não aceitará alegações de fraude.
O vídeo de Augusto Aras é tão constrangedor quanto sua atuação como procurador-geral, total e deliberadamente alheio aos fatos do País e às demandas da Constituição. Ou será que Augusto Aras entende que é papel do presidente da República cuidar do funcionamento e da apuração das eleições, envolvendo na empreitada o Ministério da Defesa? Será que o procurador-geral da República não vê nenhum problema no uso das funções públicas e da máquina pública por Bolsonaro para desacreditar as eleições e a legislação eleitoral?
Augusto Aras pode não querer ver, mas todo ataque de Jair Bolsonaro à Justiça Eleitoral é ataque direto à legislação eleitoral, definida pelo Congresso. E isso constitui crime de responsabilidade. É afronta às atribuições do Legislativo. É tentativa de interferência no trabalho do Judiciário. É desrespeito às regras do jogo democrático.
Os excessos pretéritos do Ministério Público – entre outros, performances midiáticas de procuradores e denúncias ineptas baseadas em delações duvidosas – causaram muitos danos ao País, e seus efeitos são ainda diariamente sentidos. Mas não se corrige excesso com omissão. Há direito às férias, mas há também o dever de trabalhar. Há uma ordem jurídica e um regime democrático a serem defendidos.
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