Baixa diplomacia
Trump troca defesa da liberdade pela adulação a Putin
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Em seus quase 250 anos, os Estados Unidos alteraram períodos de isolamento com outros de voluntarismo internacional; promoção da paz e defesa da guerra.
Mas o país, de maneira gral, buscou externalizar os seus valores domésticos, como a defesa da liberdade e da democracia.
Quando as circunstâncias obrigavam os americanos a se aliar a uma ditadura ou iniciar ações questionáveis, havia sempre uma justificativa, como a necessidade de impedir o domínio soviético na Guerra Fria ou o combate ao terrorismo.
Este ano, o presidente Donald Trump mudou esse padrão ao alinhar-se com o ditador Vladimir Putin e atacar o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky.
Trump assumiu intencionalmente o lado errado na guerra, sem se preocupar em dar qualquer desculpa plausível para suas escolhas.
Putin tem as cartas
Trump defendeu seu apoio a Putin alegando que o ditador tem poder, enquanto Zelensky está enfraquecido. Vale a lei do mais forte.
“Eu tive conversas muito boas com Putin, mas não tive boas conversas com a Ucrânia. Eu tenho assistido isso por anos, e tenho assistido ele (Zelensky) negociar sem cartas. Ele não tem cartas, e a gente fica doente com isso. Para mim já deu”, disse Trump.
A ditadura russa invadiu a democracia ucraniana sem qualquer razão, mas isso é algo que Trump prefere ignorar.
Mais do que isso, o americano atacou diretamente Zelensky e destruiu sua autoridade.
Em uma publicação nas redes sociais na semana passada, Trump disse que Zelensky, “um comediante modestamente bem-sucedido” convenceu os EUA a gastarem 350 bilhões de dólares na guerra.
A verdade é que Zelensky foi eleito presidente e, com a guerra e a imposição de uma lei marcial, permaneceu no cargo para comandar as Forças Armadas, assim como fez o britânico Winston Churchill na Segunda Guerra. Para Trump, porém, isso faz do ucraniano um “ditador sem eleições”.
É uma inversão completa de valores. Não há registro recente de um presidente americano atacar de maneira tão vil um aliado democrático que teve seu território invadido e mais de 100 mil mortos.
Na mesma mensagem, Trump bota a culpa em Zelensky pelas mortes.
“Eu amo a Ucrânia, mas Zelenskyy fez um trabalho terrível, seu país está destruído, e milhões morreram desnecessariamente”, escreveu o presidente americano.
Ao deslegitimar Zelensky, Trump faz um imenso favor para Putin, no momento em que se anunciam as negociações para tentar solucionar o conflito.
Tradição americana
O direcionamento que Trump está dando para a política externa americana vai na conramão da história do país.
Nas ações internacionais, os Estados Unidos acreditaram na ideia de que eles são um exemplo para o mundo.
O advogado puritano John Winthrop, que depois se tornaria governador de Massachusetts, colocou essa ideia em um sermão, em 1630.
“Devemos considerar que seremos como uma cidade sobre uma colina. Os olhos de todos os povos estão sobre nós”, afirmou ele.
Franklin Roosevelt fundamentou a atuação americana na Segunda Guerra mundial com um discurso baseado na defesa de quatro liberdades.
“Nos dias futuros, que buscamos tornar seguros, esperamos um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais. A primeira é a liberdade de expressão e discurso — em todo lugar do mundo. A segunda é a liberdade de cada pessoa adorar a Deus à sua maneira — em todo lugar do mundo. A terceira é a liberdade da carência — que, traduzida em termos mundiais, significa entendimentos econômicos que garantirão a cada nação uma paz saudável de tempo de vida para seus habitantes — em todo lugar do mundo. A quarta é a liberdade do medo — que, traduzida em termos mundiais, significa uma redução mundial de armamentos a tal ponto e de forma tão completa que nenhuma nação estará em posição de cometer um ato de agressão física contra qualquer vizinho — em qualquer lugar do mundo”, afirmou Roosevelt.
Quando John F. Kennedy assumiu como presidente, em 1961, a Guerra do Vietnã já tinha se iniciado. Em seu discurso, ele foi na mesma de seus antecessores: “Que cada nação saiba, quer nos deseje bem ou mal, que pagaremos qualquer preço, suportaremos qualquer fardo, enfrentaremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer amigo, nos oporemos a qualquer inimigo, a fim de assegurar a sobrevivência e o sucesso da liberdade.”
Mais recentemente, em 2002, Joe Biden justificou a ajuda para a Ucrânia em uma fala em Varsóvia, na Polônia.
“Lutar para salvar sua nação (Ucrânia) e sua corajosa resistência é parte de uma luta maior por princípios democráticos essenciais que unem todas as pessoas livres. O estado de direito, eleições justas e livres, a liberdade de falar, escrever e se reunir. A liberdade de rezar para quem quiser. A liberdade de imprensa. Esses princípios são essenciais em uma sociedade livre”, afirmou Biden.
“Mas eles sempre, eles sempre estiveram sob cerco. Eles sempre foram combatidos. Cada geração teve que derrotar os inimigos morais da democracia. É assim que o mundo é, pois o mundo é imperfeito, como sabemos. Os desejos e ambições de alguns buscam sempre dominar as vidas e a liberdade de muitos”, disse Biden.
Sem garantias
Ao apoiar Putin e atacar Zelensky, Trump joga no lixo o melhor da tradição diplomática americana, que buscava se orientar por nobres princípios.
Trump é o oposto disso.
O presidente chegou a oferecer a Zelensky garantias de segurança caso o ucraniano cedesse controle sobre minerais em seu subsolo, como uma maneira de pagar pela ajuda militar.
Quando o ucraniano insinuou que toparia um acordo, Trump retirou a oferta.
Zelensky foi abandonado, e só pode pedir ajuda aos europeus.
E Trump ainda rifa Zelensky sem saber se terá alguma possibilidade de sucesso em acabar com a guerra.
Desentendimentos já começam a aparecer.
Na terça, 25, Trump disse que Putin aceitaria forças de paz europeias na Ucrânia, mas o Kremlin negou a informação no mesmo dia.
Um acordo pelo fim da guerra pode nunca acontecer.
E, mesmo que aconteça, a ameaça russa não deixará de existir.
Quando invadiu a Ucrânia, há exatos três anos, Putin esperava conquistar o país todo em três dias.
Não conseguiu porque uma coluna de tanques que ia na direção à capital Kiev foi completamente destruída.
Mas, a qualquer momento, Putin poderá pensar em tentar de novo.
E ainda há o risco de que o ditador russo pegue um naco de outro país europeu.
Trump não apenas atropelou a tradição diplomática americana, como ainda deixou Putin salivando.
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